A exibição de Glória (1980), de John Cassavetes, no Solar dos Mellos, nesta quinta-feira (14), animou o debate filosófico proporcionado pelo projeto Ciclo de Palestras Cinema e Filosofia, conduzido desde abril pelo Núcleo de Estudos Claudio Ulpiano. O evento é seguido de palestras e termina no mês de novembro, sendo apresentado às segundas quintas-feiras do mês, às 19h, com entrada franca. A psicanalista e doutora em Literatura Comparada pela Uerj, Viviane de Lamare, foi a palestrante que veio falar sobre o filme e o trabalho do cineasta.
O Ciclo de Palestras Cinema e Filosofia vem apresentando uma seleção de filmes de cineastas de renome, trazendo, cada um deles, em suas obras, um modo particular de romper com o domínio do tempo empírico e, conseqüentemente, com o cinema realista. O ciclo do CCLULP aborda, por meio de palestras, alguns dos elementos trabalhados por esses cineastas na produção de seus filmes, erguendo a idéia de um cinema-arte que nos leva a pensar, distinguindo-o do cinema voltado para o simples entretenimento.
Em sua palestra, Delamare resumiu a solução criada pelo diretor para romper com as coordenadas do cinema chamado realista. “O cinema nos mostra que há vários modos de escapar das cadeias do tempo empírico, que organiza a nossa vida e orienta o nosso dia-a-dia, constituindo também a base do cinema realista, cuja expressão mais óbvia é o cinema de Hollywood. A princípio, Glória parece ser um filme de ação típico de Hollywood, uma história sobre a Máfia. No entanto, a trama é desfeita a partir das personagens, tomadas por forças inconscientes que as levam por rumos inusitados”, comenta.
O filme é estrelado por Gena Rowlands, uma belíssima mulher e talentosíssima atriz que se tornou esposa e musa da obra do cineasta. Cassavetes também atuou em diversos filmes. Foi inclusive indicado a um Oscar de melhor ator coadjuvante em 1967 pelo papel do soldado psicótico Victor Franco em "Os Doze Condenados".
John Cassavetes
O nova-iorquino John Cassavetes (1929-1989) apareceu e fez seu nome preenchendo uma demanda pelas coisas urgentes da vida que existem do lado de lá das muradas dos grandes estúdios. Mais que um pioneiro no namoro do modus operandi da cinematografia americana com o fazer documentário, ele foi um ourives de uma linhagem de produções pobres, sem pirotecnias ou esquemas predeterminados. Compôs, de maneira lírica e romântica, um sistema de filmar que dava os braços ao teatro, na melhor tradição de Tchecov, e ao registro tal e qual do cotidiano.
Diferente das renovações cinematográficas que aconteceram nos anos 60 na França, na Itália, e no Brasil, onde grupos de cineastas enfrentaram de forma coletiva e através da reflexão e da crítica o cinema dominante, Cassavetes partiu solitariamente e de forma intuitiva para uma prática que, bem ao lado de Hollywood, rompeu com os clichês do cinema de então. O cinema foi para Cassavetes uma maneira de viver. Criou com a família e os amigos uma espécie de utopia cinematográfica na qual os filmes tinham de ser impregnados da vida de todos os que trabalhavam neles.
Cassavetes era, assim, das tripas coração. Tirava das entranhas a fúria que alimentava crônicas quase sempre amargas, mas muito apaixonantes, adultas, sobre as mazelas do querer e o peso da convivência nas relações. "Se eu puder, farei filmes com não-profissionais, com pessoas que se permitem sonhar com uma recompensa diferente do dinheiro, pessoas com um desejo frenético de participar de algo criativo sem saberem exatamente o quê. Fazer filmes é prazer em estado puro", afirmava ele, feito quem levanta e protege uma bandeira sociopolítica.