Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial


Biografia Carukango


APRESENTAÇÃO

A importância do líder quilombola Príncipe Moçambicano Carukango é para nós, sociedade fluminense, tão intensa e forte quanto é Zumbi dos Palmares para o Brasil. Conhecer e Fortalecer a história deste grande líder que foi sequestrado de África para ser escravizado aqui em nossa região é antes de tudo a ressignificação da história africana e afro-brasileira em nossa sociedade como um todo, mas principalmente no ambiente escolar.

Carukango, assim como outras personalidades negras eram reis, rainhas, príncipes, princesas e possuíam seus reinados no continente africano antes de serem separados de suas famílias e culturas. Este grande líder estabeleceu seu quilombo na serra do deitado, região serrana que compreende as cidades de Macaé e Conceição de Macabu, historicamente o 2º maior quilombo do Brasil e o maior do estado do Rio de Janeiro. Ali, Carukango travou suas batalhas na defesa dos quilombolas contra o poder da época, vencendo a maioria delas com estratégia de guerra e muita valentia.

Recriar, ressignificar e rememorar a história de líderes como Zumbi, Dandara, Tereza de Benguela e Carukango, entre outros, é sobretudo compreender e entender que a formação socioeconômica e cultural do povo brasileiro perpassa predominantemente pelo protagonismo dos pretos e pretas escravizados em nosso país.
O legado deixado pelo Príncipe Carukango pontua exatamente no tempo e no espaço a posição de nós pretos e pretas de ontem, de hoje e especialmente os de amanhã.

Prefácio 

Carukango ou Antônio Moçambique é um dos personagens históricos mais importantes, não só de Macaé e de seu antigo distrito, Conceição de Macabu, mas de toda região e até do Estado do Rio de Janeiro. Ele representa a expressão dos oprimidos que tentavam reaver parte de sua dignidade suprimidas pela infâmia da escravatura, instituição pertinente no Brasil por mais de 300 anos. Seu exemplo não foi único, outros eventos de resistência à escravidão ocorreram diversas vezes em todo país, inclusive em nossa região, mas, o líder quilombola tem a seu dispor um histórico que não teve paralelo em parte alguma.

Embarcado à força em algum porto escravagista da África Oriental, percorreu longos trechos do Oceano Índico e Atlântico até aportar em Macaé, onde, considerado príncipe e líder religioso em sua terra natal, foi escravizado, batizado nos termos Cristãos e taxado de feiticeiro e deficiente, pois era meio corcunda e manco.

Com sua identidade e cultura violados e vilipendiados, iniciava uma trajetória de imigrantes que nunca pediram para imigrar, de trabalhadores forçados, que não pediram os empregos que lhes eram imputados, de pessoas que queriam continuar a ser pessoas, mas que eram tratados como animais domesticados. Não era o único, mas foi dos poucos que se tem detalhes de sua história, pois até o ato de conservar sua própria memória, era negado à maioria deles.

Não suportando as condições do cativeiro, revoltou-se, foi castigado, fugiu, desapareceu, caiu no esquecimento temporário. Outros escravizados o seguiram, formaram um núcleo quilombola, que, isolado, sem apoio, na condição de extrema marginalidade, tinham de sobreviver, produzindo gêneros alimentícios, mas apelaram também para ataques, fugas e roubos, sendo acusados de assassinatos várias vezes. Era uma guerra, eles foram vítimas da violência e revidaram da única forma possível naquele contexto.

Carukango, que em sua terra natal se notabilizava como autoridade política e religiosa, condição readquirida no quilombo, fora dele era reconhecido elemento perigoso, cuja atividade deveria ser extirpada, nem que fosse pelo uso da força, como foi.

Autoridades regionais, soldados, populares, organizaram-se em forma de milícias, não para enfrentar uma invasão estrangeira, ou ataques de piratas, mas, para derrotar aqueles que eram suas vítimas, vítimas do sistema escravista.

Quilombo localizado, combate travado, mortos, feridos, a rendição teatral de Carukango, seu linchamento, a chacina que se seguiu, a destruição do quilombo, cuja queda foi um alívio dos senhores escravagistas, que não teriam mais seu patrimônio diminuído pela fuga de seus cativos ou os roubos. Morria o capitão do quilombo, Antônio Moçambique, ou, por seu nome africano, Carukango, morria, mas não desaparecia.

A história, de certa forma fantástica, até mesmo, teatral, chegou até nós como uma duvidosa e tendenciosa narrativa do advogado macaense Henrique Antão de Vasconcellos, sendo fonte básica, praticamente única até o século XXI: Evocações – Crimes Célebres em Macahé, uma publicação de 1911. Até então, quem era o Carukango? Era um personagem que alguns acreditavam em sua plenitude, mas que muitos desconfiavam na mesma proporção.

Só nos anos 2000, com os avanços dos projetos de pesquisas do Solar dos Mello, o Museu de Macaé, e, da Coordenadoria Macahé 200 Anos, além, claro, dos esforços de pesquisadores isolados, é que o Carukango lendário foi se transformando no Antônio Moçambique histórico, adquirindo muito mais que uma identidade brasileira, tornando-se mais um exemplo do quanto a escravatura de homens e mulheres, um ato de extrema violência, resultou em ainda mais violência.

Carukango nunca se conformou com a escravidão, resistiu, lutou, enfrentou forças superiores em um território que não era o interior da África, no final, como alguém que nada tinha a perder, imolou-se em sacrifício como uma última tentativa de vencer uma luta que não poderia vencer.

Ele é o nosso grande personagem na luta contra as violências da escravidão, sequelas que assombram cotidianamente nosso país agora e desde sempre. Embora não seja o único, pois histórias de quilombos e outras formas de resistência, permeiam nossa trajetória, ele é aquele que melhor se adequa à melhor chance que temos de eliminar totalmente a herança maldita do preconceito: a Educação, melhor caminho de mudanças totais e definitivas que temos.

A SEPPIR, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, como braço da municipalidade macaense responsável pela luta contra o racismo e a opressão, não poderia ter escolhido personagem de nossa terra mais emblemático para mostrar que essa luta, embora não vindo de hoje, mas desde sempre, é o caminho para construção de uma paz social e humanidade mais duradoura, pois desenvolve uma forma de pertencimento que perpassa pela cidadania, exatamente, ao se conhecer um exemplo de cidadania, daquele a quem se privou tudo, inclusive a possibilidade de ser cidadão.

Que a História do Carukango, ou Antônio Moçambique, nos seja um instrumento de união, que seu legado nos mostre o caminho do respeito e da fraternidade.

Carukango vive em cada um de nós que acha que o Mundo pode ser melhor. E será, mas ainda há o que lutar.
Professor Marcelo Abreu

BIOGRAFIA
Livro: PARADA, Antonio Alvarez, Coisas e Gente da Velha Macaé (crônicas históricas) – Edigraf – SP 1958.



O Quilombo do Carukango
 
Em seu livro “Evocações-Crimes célebres em Macaé” consta o Dr. Antão de Vasconcellos três cries que tiveram ressonância e nossa terra, há coisa de um século: o de Motta Coqueiro, Chico do Padre e o Carukango.

Era Carukango um preto escravo, natural de Moçambique e eu, quando em nossa terra estava em plena pujança à importação de escravos africanos, aqui chegara em um navio negreiro.

De compleição baixa, era atarracado e meio corcunda. Era escravo de um dos fazendeiros da família Pinto, muito numerosa nas freguesias das Neves e do Frade.

Preto rebelde e de maus instintos, vivia continuamente acorrentado e “por muitas vezes sofreu o cruciante castigo do bacalhau, no pelourinho ou na escada”. Além da sua perversidade que o fazia temido pelos demais escravos, gozava, junto a estes, de prestígio e respeito enormes, tido e havido que era como feiticeiro.

Certo dia, sem que se descobrisse como, fugiu o Carukango. À sua, sucederam-se, nas fazendas vizinhas, inúmeras fugas de escravos, de tal forma estranhas que, durante muito tempo, não se teve notícia do paradeiro dos fujões.

Já iam as fugas caindo no esquecimento geral, quando foi atacada a fazenda de um dos irmãos Pinto que, juntamente com toda sua família e os seus escravos idosos, foi degolado, fugindo os escravos moços.

Investigando o doloroso fato concluiu a polícia que este representara uma rebelião dos escravos moços e nada mais. Fracassada a tentativa de recaptura destes, o fato, tal como os anteriores, foi pouco a pouco, sendo esquecido.

A tranquilidade, entretanto, durou pouco, pois “de novo surgiram os assassinatos em massa, a fuga dos moços extermínio dos velhos e saque especialmente nos animais, dinheiro, joias e relíquias sagradas”.

Continuariam esses ataques envoltos em densa treva, não fosse um assalto malogrado à casa do fazendeiro Chico Pinto, quando este, por obra da sorte, reconheceu o Carukango chefiando os assaltantes e pode defender-se, inclusive ferindo o negro famoso.

Com as declarações de Chico Pinto ficou esclarecido que todos os anteriores assaltos e assassinatos haviam tido a inspiração e a direção do Carukango.

A polícia a par do assunto, logo tratou de organizar a luta contra o negro e demandou a assistência do Coronel Antonio Coelho Antão de Vasconcellos, militar de grande valor e que era, então, chefe do Distrito Militar da Capitania do Espírito Santo.

O Coronel Antão organizou milícias que se compunham, além da própria polícia, de vários populares, fazendeiros da região e de toda a família Pinto, alvo principal e ostensivo do Carukango.

Capturado numa sortida um dos negros da quadrilha, este, atemorizado, deu aos milicianos todas as informações que lhes permitiram chegar até o famoso Quilombo cuja descrição transcrevemos literalmente da obra já citada: “a expedição largamento municiada, avançou com as maiores cautelas, antes da aurora, e as sete hora tinha chegado ao chapadão, sede do quilombo. O assombro que se lia em todos os semblantes era indescritível! O chapadão, em uma extensão a perder de vista, era coroado por extensas roças de milho feijão, ervilhas e, enfim, toda a sorte de legumes e cereais. Tudo isso era oculto por imensa mata virgem que cobria a serra, circundando-a em toda volta. No centro das roças via-se uma casa baixa, muito comprida, com a frente para a estrada e os fundos apoiados em três enormes pedras a cavaleiro da casa. Sabia-se que o Quilombo tinha para mais de 200 escravos e era incompreensível como se abrigava, em tão pequeno espaço, tanta gente”.

Descoberto o esconderijo dos chefiados do Carukango, travou-se a luta, feroz e violenta, finda a qual os sitiantes levaram a melhor, abusando da vitória com o trucidamento de todos os vencidos que lhe caiam nas mãos ainda com vida.

O Carukango resistiu o mais que pode, vindo entretanto, a render-se, não sem antes coroar a sua rendição com uma cena de autêntica tragédia grega, cuja descrição passamos à pena de Antão de Vasconcelos.

“Subiu na frente o Carukango, vestido com hábito sacerdotal, trazendo ao peito um belo crucifixo de ouro, ante o qual todos se descobriram e abaixaram as armas já para ele apontadas. Parou, olhou para todos os lados e, dirigindo-se a passos lentos para a direita, onde estava o quartel general, ao aproximar-se do seu senhor moço, filho do Pinto seu senhor por ele assassinado bem como a família, repentinamente ergueu o braço direito que trazia oculto sob a capa sacerdotal, armado de uma pistola de dois canos e sobre ele desfechou os dois tiros, matando-o incontinente. Foi medonho este momento! Precipitaram-se sobre o Carukango, arrancaram-lhe as vestes e a imagem sagrada e o lincharam, depois de horríveis suplícios. Outra parte dos sitiantes precipitou-se pela furna e dentro fazendo fogo mataram tudo quanto ali foi encontrado, com exceção das negras,, que foram poupadas.

Mais adiante, diz ainda o autor de “Evocações”: “inquiridas as negras acerca do modus-vivendi no Quilombo soube-se que o Carukango era o imperador e o papa. Tinha serralho de todas as pretas moças; aquelas que ficava grávidas eram repudiadas e entregues aos pretos do Quilombo; logo que davam a luz a criança, era barbaramente imolada e queimada depois de morta. A nossa raça – dizia o Carukango – deve extinguir-se e não ficar um na mão do branco.”

Assim se conta, em resumo, a história triste e sangrenta do Quilombo do Carukango, página negra da vida macaense, em que “venceu a dualidade de mãos dadas: a força do direito e o direito da força”.